terça-feira, 29 de junho de 2010

Morte e Vida Severina (Fragmento)

Enquanto finalizo meu livro, vou seguindo com a publicação de autores e poemas que marcaram minha vida, segue João Cabral de Melo Neto. Quantos vivem da morte de Severinos, Josés e tantos outros nesse país? Quantos acham pouco o suor do brasileiro? Ai João!!! Você é fundamental para mim.





DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

—— Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
—— Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
—— Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
—— Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?
—— Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
—— Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar
diga-me ainda, compadre,
que mais fazias por lá?
—— Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.
—— Esses roçados o banco
já não quer financiar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?
—— Melhor do que eu ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.
—— Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá
diga-me ainda, compadre
que mais fazia por lá?
—— Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavras
pela seca faca solar.
—— Isto aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
—— Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.
—— Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
—— Em qualquer das cinco tachas
de um bangüê sei cozinhar
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
—— Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?
—— Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
—— Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.
—— Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
—— Essa vida por aqui
é coisa familiar
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
—— Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
—— Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
—— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
—— Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
—— E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
—— é, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
—— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
—— De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
—— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
—— Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar
não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Improviso ordinário sobre a Cidade Maravilhosa


Inicio as postagens com poemas que considero fundamentais. Como escrevi na postagem anterior estou finalizando meu livro e por isso estou deixando de postar poemas autorais. Uma vez li que esse poema nasceu a partir de uma série de imagens feitas por Glauco Rodrigues. Este poema me arrebatou desde a primeira vez que li.
Ferreira Gullar é fundamental para mim.
 
Comove-me pensar
que nas porcelanas e cristais da Casa Maillet
na Rua dos Ourives
num dia qualquer do ano de 1847
                 nesta cidade do Rio de Janeiro
                 (na borda de um cálice)
                 cintilava a luz da tarde
                                                                e lá fora
                 onde a tarde nada tinha do bom-tom parisiense
entre carroças puxadas a burro e homens suados
                negros no ganho
                o vento levantava a poeira do dia e do século
                (entranhado na carne das pessoas
                e que com elas
                haveria de morrer).

                Sem sacanagem,
                me comove pensar na tranqüilidade da loja
                fundada em 1843
                com suas estantes de vidro
                cheias de preciosidades
                                      - vasos, taças, jarros -
­                que tocaram o coração de algumas
                poucas senhoras cariocas
de gosto requintado e vida vã.

                E se penso na loja penso na cidade
desdobrando-se em ruelas, becos e ladeiras,
                                                em sobrados e igrejas,
fervilhando no mercado da Rua do Valongo
                onde se leiloavam escravos
                enquanto no porto
                os navios rangiam o madeirame
                sobre as águas dessa mesma baía que ora vemos
                atual e azul.
                E que
                ainda mais azul já a tinham visto
outros olhos humanos
                que se apagaram
                antes muito antes que houvesse este cais
                estas igrejas e praças
                o pelourinho
                o Mosteiro de São Bento
muito antes que alguma voz de branco ecoasse neste cenário
                onde tudo são serranias e rochedos espantosos
                com a baía dançando na atualidade do paraíso.

                Possivelmente de luvas
                (que já então se usavam luvas
                na cidade de pouco asseio
                e muitas putas)
                madame aponta
                para um vaso de porcelana de Sêvre
                e lhe pergunta o preço.

                A tarde é quente
                na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro
com suas cadeias apinhadas de presos
                respirando o fedor de seus próprios dejetos
                arrastando correntes
                para ir mendigar no meio da rua,
que o governo não alimenta criminosos.
                O Governo alimenta nobres
                e ladrões fmos
ministros, ouvidores, provedores
                que empoam a cabeleira
                e se cumprimentam com trejeitos importados
                se se cruzam nas ruas, no Fórum, nos salões.

                Já ninguém anda nu neste cenário
                                                                 que os. brancos
há séculos nos trouxeram a moral e os bons costumes
                além da sífilis.

                Não obstante, àquela altura
já a cidade transbordava de bastardos e amásias
                amores soturnos
                que aconteciam por todas as partes
                e especialmente nos conventos.
                De nada (ou muito?) valeu
a recomendação de Manuel da Nóbrega, pedindo ao Rei
                que à nova terra mandasse meretrizes
para evitar pecados e aumentar a população
                a serviço de Deus.

                E a população .cresceu
a serviço de Deus e de tantos outros
                senhores de tez clara
                donos de escrravos e de terras
                que se foram sucedendo
                a serviço de Deus e das empresas
                agora muItinacionais.

                Sem sacanagem
na cidade onde havia mais leprosos que cães vagando
                pelas ruas,
                comove-me saber que
                em 1788
                estava na moda o guarda-sol branco
                em 1789
                o verde
                e que em 1904 o desbunde eram
                os guarda-sóis azuis
                de sarja ou tafetá.

                Ah, cidade maliciosa
                de olhos de ressaca
que das índias guardou a vontade de andar nua
                e que, apesar do Toque do Aragão,
                do Recollúmento do Parto
                e do Prefeito Amaro Cavalcanti
                - impondo em 1917 a moralidade rigorosa
                nos banhos de mar - ­
                despe-se novamente hoje nas areias de Ipanema.
 
                De pouco valeu manter analfabetas
                as mulheres da cidade,
                proibi-Ias de ir à rua,
                dopá-Ias com emulsões de castidade.
                Não houve jeito senão criar a Roda
                e mais tarde
                os hotéis de alta rotatividade.

                A população cresceu.
                Cresceu talvez não bem como o queriam
                o padre Cepeda
                e o poeta Bilac.
                Cresceu festiva e arruaceira,
                mais chegada ao batuque que à novena,
                convencida de que só vale a pena
                viver se é
                pra assistir ao Fla-Flu e arriscar na centena.
                Sem falar, claro está, no seu "bacano"
                que só pensa na Bolsa e no carro do ano.

                Uma cidade é
                um amontoado de gente sem terra.
                Antes não, nem tanto, antes
havia quintal e no Campo de Santana
                as negras lavadeiras
                estendiam na grama a roupa enxaguada.
                Ah, que saudade de ver roupas na grama!
                Já não,
                já não que a lira tenho desatinada
                e a voz enrouquecida
                e não do canto
                mas de ver que venho
                falar de uma cidade endurecida,
                falar de uma cidade poluída
                falar de uma cidade
                onde a vida é
                cada dia menos do que a vida:
                asfalto asfalto asfalto
                e mais assalto
                na Tijuca, na Penha, na Avenida
                Nossa Senhora de Copacabana
                em pleno dia.

                                        Uma cidade
                é um amontoado de gente que não planta
                e que come o que compra
                e pra comprar se vende.
                Uma cidade, como a nossa, é
um labirinto de arranha-céus e transações fmanceiras,
                um mercado de brancos
                (de negros, de mulatos,
                de malucos)
                uma multiplicada Rua do Valongo.
                Vendem-se frutas, carnes congeladas,
                vendem-se couves, conas, inspiradas
                canções de amor, poemas, vendem-se jornadas
                inteiras de vida,
                noites de sono,
                vende-se até o futuro
                e a morte às companhias de seguro.



A tarde se apagou.
                                            As porcelanas
                não brilliam mais na Rua dos Ourives.
                A Casa Maillet fechou as portas
                e seu dono fechou o paletó.
                De paletó fechado, de camisa
                ou sem camisa,
                ricos e negros, brancos e pobres,
                mulatos, mamelucos,
                todos os que passavam pela rua
                àquela hora
                (quando a mullier de luvas perguntou
                pelo preço do vaso)
                se foram
                com o sol, o pó e os guarda-sóis da época.
                A noite
                que ardeu nos lampiões de óleo
                (depois de gás)
                aquela noite e muitas outras noites
passaram recendendo a carbureto e esperma
                voando lentas sobre o Mangue
                ou nas asas dos aviões
que descem de entre as constelações do céu.


                E vem a manhã.
                A cidade dá curso à sua história
               (de féretros verões e diarréias)
                em frente ao mar.
                Carregados de dívidas, CPF, relógio de pulso,
                entre desastres ecológicos, sob os temporais
                de janeiro,
                viajamos com ela
                pelos espaços estelares,
                velozmente.


                Amigos morrem,
                as ruas morrem,
                as casas morrem.
                Os homens se amparam em retratos.
                Ou no coração dos outros homens.
                                                                
                             Outubro, 1978
                                                                      Ferreira Gullar







segunda-feira, 21 de junho de 2010

Vou ali e já volto

Estou fechando meu livro, por isso me dedicarei a postar poemas de outros autores que para mim são fundamentais. Este poema vai estar no livro. É uma prévia no blog. Longe de ser uma despedida! É apenas a junção de duas coisas que gostaria de fazer. Continuem visitando, pois gostaria de debater com vocês sobre esses poemas que postarei.


Vou ali e já volto

Vou ali e já volto
Vou dar a vez a outro
Que precisa do seu colo
Então vou ali e já volto

Vou ali e já volto
Ter mais do mesmo
Não chore que eu não choro
Eu vou ali e já volto

Vou ali e já volto
Vou encontrar comigo
É que bem no meu âmago me renovo
Por isso vou ali e já volto

Vou ali e já volto
Sentir o cheiro das meninas,
Parar em cada esquina,
Eu vou ali e já volto

Vou ali e já volto
Andar na orla, correr na lagoa,
Caminhar na lapa, cruzar o Rebouças
Então vou ali e já volto

Vou ali e já volto
Sair do quarto escuro
Achar o que procuro
Pois então, vou ali e já volto

Vou ali e já volto
Não precisa sentir dor,
Saudade ou remorso
Eu só vou ali e já volto

Vou ali e já volto
Pedra parada faz lodo
Volto novo
Bobo
Louco
Fui ali e já volto

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Desvio

Poema feito após a leitura da crônica "Deixe minha culpa em paz" de Fabrício Carpinajar contida no livro "Mulher Perdigueira". Uma outra opinião sobre o tema foi motivadora dessa postagem. Fabrício Carpinejar é um dos melhores Poetas dessa geração.

Desvio

Nāo fui eu!

E o gosto fétido de escarro na boca
Poucos segundos para refletir
Com pensamento e voz rouca
Quando é hora de engolir ou de cuspir
Digerindo lentamente adentra o corpo
Aceitando o repugnante ingerir
Ou arremessando afora o mau todo
Enganando-me que posso até sorrir.

É assim a nossa culpa
Anulando o nosso decidir
Engolir ou cuspir nunca nos ajuda
Evitar esse nosso dúbio sucumbir.


domingo, 13 de junho de 2010

Poemeto Crepuscular


E mais uma voz se cala
E tudo se prova perecível
Indizível pensar na falta
Mesmo sabendo que viver é possível.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O Nelson



Durante algum tempo escrevi para o site quero cultura em duas colunas na janela queroliteratura. Escrevia Poesias e Crônicas. Minhas crônicas são sobre o cotidiano seja com humor ou não. Esta é a segunda que estou postando na mesma linha. Sinto que o mundo está cinza e cada vez mais sem humor. Existe um excesso de pudor e o politicamente correto tomou conta das coisas e vem deixando o mundo cada vez mais com cara de beata de igreja.




 O Nelson


É manhã, o dia mal amanheceu e olho para o relógio ainda são 06:00hs, já estou sem sono algum, mas com uma preguiça absurda e desistimulante de recomeçar a vida. Apesar dos meus problemas aumentarem consideravelmente essa falta de estímulo, sei que sempre fui assim desde a minha infância. Lembro quando ainda garoto o despertador tocava e em seguida recebia um beijo da minha santa mãe, pois já era hora da escola, eu estava acordado antes do primeiro som do despertador e já habitava dentro do meu ser uma vontade incomum de não sair da posição que meu corpo cansado de não fazer nada repousava. Levantei-me, tirei o pijama e saí de casa em silêncio para não acordar minha esposa e meu cunhado.
            Meu cunhado marcou minha vida literalmente, de fato ou qualquer outra expressão que venha designar “muito pra caramba”. Conheci este indivíduo a exatos 39 anos, oito meses, 27 dias e 14 horas. Exatamente 15 dias após conhecer Silvia da Costa Pereira Gonzalez que se tornaria dois anos depois minha adorável esposa. Digo adorável, pois depois da minha já citada santa mãezinha não pairou sobre este planeta mulher mais sensacional. Quando entrei no apartamento de Silvia fui recebido pelos seus pais. A velha me deu um caloroso abraço, daqueles que você recebe de umas tias que pouco vê, mas fingem umas saudades absurdas quando lhe encontram. O velho iniciou um repertório de piadas sem graça que se repetiriam até dez anos atrás, quando Deus concluiria que a missão do meu sogro terminara. A missão do meu sogro nesta encarnação só pode ter sido a de purificar a alma de todos que o cercaram, pois bastava trinta segundos com ele para você pagar uns nove pecados pelo menos. Enfim o saudoso patriarca da família Gonzalez foi embora deixando o mundo um pouco mais puro e muito mais aliviado.
            Eram dezesseis horas daquele dia e logo os pais de Silvia me ofereceram uma xícara de café tão quente que chegara a queimar meus lábios, língua e todo resto da boca. Os sofás eram simples, o apartamento pequeno, mas ambos eram muito confortáveis e chegou a bater aquela falsa impressão que teria sido recebido com muito carinho. Milésimos de segundo após a falsa sensação surgiu um animal enorme que mais parecia um urso esquizofrênico pulando na minha direção. A criatura nefasta e retardada cheirava mal e derramou todo café quente entre meu umbigo e minhas pernas garantindo assim a virgindade de Silvia por mais algumas semanas. Logo atrás veio o Nelsinho, o cunhado, jurando que tinha soltado o cachorro por acidente e me pedindo desculpas. Algo me dizia que aquilo era mais que uma família, era a quadrilha Gonzalez com mascote e tudo.
            Nelson cresceu com os pais lhe tratando como um bebê, dando a ele tudo que queria. Meus sogros deixavam meu cunhado dar ordens dentro de casa, apesar de nunca ter comprado uma caixa de fósforos para ajudar. Mal tenho tempo de falar na fofoqueira da minha cunhada, pois no filme da minha vida meu cunhado é infelizmente personagem principal. Se resolvesse ir a um bar, assim que a cerveja fosse posta na mesa parecia assombração: o Nelson estava ao meu lado. Organizava-se um jantar romântico com minha esposa, justamente na hora em que a mesa estivesse pronta, batiam na porta era o Nelson dizendo que chegara em boa hora. É que o desgraçado tinha ficado amigo do rapaz da portaria, chamava-o de conterrâneo sem ao menos ter pisado na terra natal do meu porteiro. E quando ele baixava de conselheiro? Era uma mistura de Pai de Santo com “Freud de beira de estrada”! Aproximava-se da minha mulher, dizendo-a que merecia um marido melhor e que por ele, jamais teria deixado Silvia casar comigo. Diz aos meus filhos que sou pão duro e na adolescência deles, bastava proibir algo que ele dizia que eu não sabia educar meus próprios filhos. O pior é que na minha frente ele falava que era meu melhor amigo. Perseguia-me tanto que se fosse nos dias de hoje, eu acharia que apesar de não ter um centavo ele tinha dado um jeito de me vigiar com câmeras vinte e quatro horas por dia. Como naqueles programas que transformam idiotas em celebridades.
            Existiu um final de semana nesses 39 anos, oito meses, 27 dias, 14 horas e agora 16 minutos que julguei ter sido minha redenção. Aconteceu há 16 anos atrás quando minha sogra já meio doente pediu aos filhos e ao marido que fossem com ela até Aparecida do Norte pagar uma promessa que ela estava temerosa de falecer antes de cumprir. A velha acreditava que existia um SPC ou SERASA dos santos e que se não pagasse a promessa ficaria barrada no paraíso. Viajaram sexta-feira no final da tarde e fiz questão de comprar as cinco passagens. Acompanhei a entrada de cada um no ônibus e acenei para todos na janela, fiz questão de dar um tchauzinho para o meu cunhado que já começava a se entreter com uma jovem de uns dezessete anos que provavelmente lhe dará um fora nos primeiros quilômetros de viajem.
            Assim que cheguei em casa coloquei a roupa nova, o perfume importado e fui em direção a uma noitada com um amigo solteirão que só nos falamos quando quero chutar o pau da barraca. Ele em dez minutos de papo me atualizou sobre os tipos de mulheres que freqüentavam a noite e em quinze estávamos com quatro deusas em nossa mesa. Só poderia agradecer a Deus por ter dado um jeito dos Gonzalez irem de encontro com sua mãe. Agora, eu que teria de ir para Aparecida do Norte pagar uma promessa. Era um sonho, eu e meu amigo com quatro mulheres lindíssimas! Ouço uma cadeira se arrastar e... Era a quinta deusa pedindo para sentar na nossa mesa. Todo o barzinho com inveja e ouço outra cadeira se arrastar e... Era... Meu cunhado! Como pode? Como me descobrira em uma cidade tão grande? E o pior é que eu vi ele entrar no ônibus, acenei, será um sósia? Fiquei em estado de choque por uns trinta segundos e antes que eu falasse, ele já foi se explicando: "Resolvi descer do ônibus para lhe fazer companhia" disse na maior. Julguei mal a menina de dezessete anos, ela era mais perspicaz e adiantou o fora nos primeiros metros. Ele ficou sem graça e deu um jeito de voltar e consequentemente acabar com a minha noite. Começou a iniciar um repertório de piadas horríveis. Creio que na divisão genética o rapaz ficou com os genes humorísticos do pai. E aos poucos as garotas foram se afastando e aos muitos minha vida se aproximando. Meu amigo foi embora e acabei ficando sozinho com ele para pagar a conta, pois o meu querido cunhado Nelson não tem dinheiro nem para o chiclete de hortelã. No domingo uma tragédia ainda mais grave, minha sogra passara mal depois de pagar a promessa e ao chegar em casa fui tentar salvá-la. Muito triste! Seu sofrimento durou dois dias apenas e após passar duas noites com ela no hospital fez questão de me chamar. Queria pedir desculpas se algum dia me fez algum mal, me abraçou e disse suas últimas palavras:



"Cuide do Nelsinho, por favor!”.








domingo, 6 de junho de 2010

Liberdade

 O medo de ser livre é o que nos aprisiona todos os dias.
Vou me libertar e liberar meus versos.
Eles nem imaginam onde podem ir.
Saberão um dia, tenho certeza!
Receberão o habeas corpus do lirismo.
Serão como barcos à deriva...
Prontos para se entregar as correntes,
Norte, sul, leste, oeste...
Noroeste, sudeste, nordeste, sudoeste...

Ah não!

Sou réu do verso vilão!
E a rima sempre será minha doce prisão.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Linha de Passe (A brejeirice de quem não quer crescer)


Gosto de brincar com as palavras,
Desde pequeno é uma mania.
Desafiar as falas em uma lavra
Que faço com prazer e ousadia.

Gingo com o dizer em versos
E sou perverso no inverso do dizer
Sem temer todo e qualquer regresso
Que a vingança da palavra vai prover.

Chamo toda turma para travessura
Sou fugaz! Quanto mais, melhor!
Chamo o tempo e o sentimento com candura
E o barulho cada vez fica maior.

E brinco o tempo todo...
Brinco com o tempo todo...
Brinco todo tempo louco...
Tempo, tempo, tempo...louco...

Ainda chamo a imagem
Por vezes somos dupla contra os dois
Ela se prende à minha retina com coragem
Traduzimos o olhar do agora no depois

Quando o tempo vence é saudade
Se a palavra vence é dilema
Lembrança é na vitória da imagem
E a traquinagem do meu vencer é o poema.