quinta-feira, 24 de junho de 2010

Improviso ordinário sobre a Cidade Maravilhosa


Inicio as postagens com poemas que considero fundamentais. Como escrevi na postagem anterior estou finalizando meu livro e por isso estou deixando de postar poemas autorais. Uma vez li que esse poema nasceu a partir de uma série de imagens feitas por Glauco Rodrigues. Este poema me arrebatou desde a primeira vez que li.
Ferreira Gullar é fundamental para mim.
 
Comove-me pensar
que nas porcelanas e cristais da Casa Maillet
na Rua dos Ourives
num dia qualquer do ano de 1847
                 nesta cidade do Rio de Janeiro
                 (na borda de um cálice)
                 cintilava a luz da tarde
                                                                e lá fora
                 onde a tarde nada tinha do bom-tom parisiense
entre carroças puxadas a burro e homens suados
                negros no ganho
                o vento levantava a poeira do dia e do século
                (entranhado na carne das pessoas
                e que com elas
                haveria de morrer).

                Sem sacanagem,
                me comove pensar na tranqüilidade da loja
                fundada em 1843
                com suas estantes de vidro
                cheias de preciosidades
                                      - vasos, taças, jarros -
­                que tocaram o coração de algumas
                poucas senhoras cariocas
de gosto requintado e vida vã.

                E se penso na loja penso na cidade
desdobrando-se em ruelas, becos e ladeiras,
                                                em sobrados e igrejas,
fervilhando no mercado da Rua do Valongo
                onde se leiloavam escravos
                enquanto no porto
                os navios rangiam o madeirame
                sobre as águas dessa mesma baía que ora vemos
                atual e azul.
                E que
                ainda mais azul já a tinham visto
outros olhos humanos
                que se apagaram
                antes muito antes que houvesse este cais
                estas igrejas e praças
                o pelourinho
                o Mosteiro de São Bento
muito antes que alguma voz de branco ecoasse neste cenário
                onde tudo são serranias e rochedos espantosos
                com a baía dançando na atualidade do paraíso.

                Possivelmente de luvas
                (que já então se usavam luvas
                na cidade de pouco asseio
                e muitas putas)
                madame aponta
                para um vaso de porcelana de Sêvre
                e lhe pergunta o preço.

                A tarde é quente
                na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro
com suas cadeias apinhadas de presos
                respirando o fedor de seus próprios dejetos
                arrastando correntes
                para ir mendigar no meio da rua,
que o governo não alimenta criminosos.
                O Governo alimenta nobres
                e ladrões fmos
ministros, ouvidores, provedores
                que empoam a cabeleira
                e se cumprimentam com trejeitos importados
                se se cruzam nas ruas, no Fórum, nos salões.

                Já ninguém anda nu neste cenário
                                                                 que os. brancos
há séculos nos trouxeram a moral e os bons costumes
                além da sífilis.

                Não obstante, àquela altura
já a cidade transbordava de bastardos e amásias
                amores soturnos
                que aconteciam por todas as partes
                e especialmente nos conventos.
                De nada (ou muito?) valeu
a recomendação de Manuel da Nóbrega, pedindo ao Rei
                que à nova terra mandasse meretrizes
para evitar pecados e aumentar a população
                a serviço de Deus.

                E a população .cresceu
a serviço de Deus e de tantos outros
                senhores de tez clara
                donos de escrravos e de terras
                que se foram sucedendo
                a serviço de Deus e das empresas
                agora muItinacionais.

                Sem sacanagem
na cidade onde havia mais leprosos que cães vagando
                pelas ruas,
                comove-me saber que
                em 1788
                estava na moda o guarda-sol branco
                em 1789
                o verde
                e que em 1904 o desbunde eram
                os guarda-sóis azuis
                de sarja ou tafetá.

                Ah, cidade maliciosa
                de olhos de ressaca
que das índias guardou a vontade de andar nua
                e que, apesar do Toque do Aragão,
                do Recollúmento do Parto
                e do Prefeito Amaro Cavalcanti
                - impondo em 1917 a moralidade rigorosa
                nos banhos de mar - ­
                despe-se novamente hoje nas areias de Ipanema.
 
                De pouco valeu manter analfabetas
                as mulheres da cidade,
                proibi-Ias de ir à rua,
                dopá-Ias com emulsões de castidade.
                Não houve jeito senão criar a Roda
                e mais tarde
                os hotéis de alta rotatividade.

                A população cresceu.
                Cresceu talvez não bem como o queriam
                o padre Cepeda
                e o poeta Bilac.
                Cresceu festiva e arruaceira,
                mais chegada ao batuque que à novena,
                convencida de que só vale a pena
                viver se é
                pra assistir ao Fla-Flu e arriscar na centena.
                Sem falar, claro está, no seu "bacano"
                que só pensa na Bolsa e no carro do ano.

                Uma cidade é
                um amontoado de gente sem terra.
                Antes não, nem tanto, antes
havia quintal e no Campo de Santana
                as negras lavadeiras
                estendiam na grama a roupa enxaguada.
                Ah, que saudade de ver roupas na grama!
                Já não,
                já não que a lira tenho desatinada
                e a voz enrouquecida
                e não do canto
                mas de ver que venho
                falar de uma cidade endurecida,
                falar de uma cidade poluída
                falar de uma cidade
                onde a vida é
                cada dia menos do que a vida:
                asfalto asfalto asfalto
                e mais assalto
                na Tijuca, na Penha, na Avenida
                Nossa Senhora de Copacabana
                em pleno dia.

                                        Uma cidade
                é um amontoado de gente que não planta
                e que come o que compra
                e pra comprar se vende.
                Uma cidade, como a nossa, é
um labirinto de arranha-céus e transações fmanceiras,
                um mercado de brancos
                (de negros, de mulatos,
                de malucos)
                uma multiplicada Rua do Valongo.
                Vendem-se frutas, carnes congeladas,
                vendem-se couves, conas, inspiradas
                canções de amor, poemas, vendem-se jornadas
                inteiras de vida,
                noites de sono,
                vende-se até o futuro
                e a morte às companhias de seguro.



A tarde se apagou.
                                            As porcelanas
                não brilliam mais na Rua dos Ourives.
                A Casa Maillet fechou as portas
                e seu dono fechou o paletó.
                De paletó fechado, de camisa
                ou sem camisa,
                ricos e negros, brancos e pobres,
                mulatos, mamelucos,
                todos os que passavam pela rua
                àquela hora
                (quando a mullier de luvas perguntou
                pelo preço do vaso)
                se foram
                com o sol, o pó e os guarda-sóis da época.
                A noite
                que ardeu nos lampiões de óleo
                (depois de gás)
                aquela noite e muitas outras noites
passaram recendendo a carbureto e esperma
                voando lentas sobre o Mangue
                ou nas asas dos aviões
que descem de entre as constelações do céu.


                E vem a manhã.
                A cidade dá curso à sua história
               (de féretros verões e diarréias)
                em frente ao mar.
                Carregados de dívidas, CPF, relógio de pulso,
                entre desastres ecológicos, sob os temporais
                de janeiro,
                viajamos com ela
                pelos espaços estelares,
                velozmente.


                Amigos morrem,
                as ruas morrem,
                as casas morrem.
                Os homens se amparam em retratos.
                Ou no coração dos outros homens.
                                                                
                             Outubro, 1978
                                                                      Ferreira Gullar







3 comentários:

Flávio Morgado disse...

Obra-prima de Gullar: mantém sua ironia e seu ativismo, que de todos já vistos é o mais poético. A maneira como o poeta viaja por entre a "suja memória não transmitida" de nossa cidade é maravilhosa. Contudo, é uma poesia que existe em todos nós, quem já estudou sobre nossa cidade, sabe muito bem o quanto ela nada tinha de belle époque; sua insalubridade, sua classe alta desde já hipócrita e e querendo ser européia. Por debaixo dos panos, talvez esse bele pano de fundo que é nossa cidade, uma cidade onde abrigava milhares de negros, expostos ao trabalho forçado, excluídos dos louros da História.
E fecha lindamente:
"Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração dos outros homens."

Uma postagem memorável, principalmente se somada ao vídeo.
Parabéns.

F.M.

Rodrigo Braga disse...

"Sem sacanagem"...

Lindo comentário Flávio. Um poema que é grandioso já na linguangem, simples e genial. A crítica social, as imagens retradas e como a memória não nos ajudou em muita coisa.

Carol Sakurá disse...

Poema genial!
Adoro a maneira que vc 'poetiza'mesclando imagens e textos.
Sem palavras para Gullar!
Beijos!