segunda-feira, 2 de agosto de 2010

São Coisas Nossas

Antes de tudo quero dizer que Noel é um gênio e uma das minhas principais influências. Devemos a ele grande parte do que entendemos como música popular brasileira. Desnecessária qualquer fala sobre a genialidade do “Poeta da Vila”. Nessa penúltima postagem onde cito minhas influências falo de Noel e de mais uma polêmica com seu nome. Não a clássica polêmica com Wilson Batista, mas com o racismo. Sempre se discutiu sobre a letra de “Feitiço da Vila” em rodas, mas foi o discurso que Caetano Veloso fez em um palco que fez com que pegasse fogo o debate na cidade. Volta e meia alguém ainda toca no assunto, como ocorreu no último sábado em um bate papo. Porém para entender as circunstâncias da letra e essa discussão toda, devemos lembrar do passado. Toda polêmica entre Noel e Wilson começou com música “Lenço no pescoço” gravada por Silvio Caldas que tinha versos como: “Lenço no pescoço//Navalha no bolso//Eu passo gingando//Provoco e desafio//Eu tenho orgulho//Em ser tão vadio”. Ode a vida à margem da sociedade, vida de malandro das antigas que ia totalmente de encontro com que “era certo”. Noel compôs versos como: ... “E tira do pescoço o lenço branco//Compra sapato e gravata//Joga fora essa navalha//Que te atrapalha”...crítica incisiva ao comportamento e finalizando com uma crítica pessoal: ... Já te dei papel e lápis//Arranja um amor e um violão”(Lembro que Wilson Batista era aluno da mãe de Noel e freqüentava a casa dele quando criança).
            A polêmica se deu início e pelo teor das canções não acho que era uma brincadeira como alguns pesquisadores dizem. Mas o que levou Noel a escrever uma canção que criticava uma música como várias outras que ele já havia composto? Escola de Malandro, Capricho de rapaz solteiro são duas de muitas composições que ele fez enaltecendo um estilo de vida que até então era marginalizado. Dizem que se baseou em uma coluna do amigo e jornalista Orestes Barbosa que tinha escrito criticando a canção de Wilson. Não concordo com esse argumento, acho pouco para tanto. Escutei de um velho bamba que Wilson tinha entrado em uma disputa com Noel por uma garota. Wilson ficou com a “pequena” e Noel aguardava ansiosamente pelo troco.
Sempre achei que Feitiço da Vila foi feito em um momento inflamado de Noel, pois o Poeta da Vila frequentava vários morros da cidade e seus amigos eram de maioria de pela mais escura que a dele. Porém, bairrismo à parte,Caetano tem razão quando comenta que a música tem um racismo embutido, racismo comum à época. É o mesmo racismo que Chico colocou de forma inteligente em seu recente “Leite Derramado”. Com certeza a leitura da música hoje é diferente do que foi naquela época onde esses tipos de comentários eram considerados “normais”. Só não gosto quando Caetano usa (e usa muito bem sua retórica para isso) a canção para defender alguns nomes da bossa nova, porém o que ele ignora é que o crédito da “nova bossa” ficou para elite burguesa e isso era o que incomodava gente como José Ramos Tinhorão. Muitos anos depois o Próprio Tom Jobim devolveria esse crédito em plena quadra da mangueira dizendo que a bossa nova tinha nascido no morro. Não gosto da condição de intocável que se coloca em alguns grandes autores e acho que Noel não queria se tornar um clássico. Sua música é jovem e ousada ainda hoje. Só uma coisa que o vídeo abaixo me incomoda muito: Que público era aquele? Estavam em um stand up show? Riam e riam sem ao menos raciocinar sobre o que se estava falando... triste não? Caetano já se incomodava com as referências racistas na canção antes mesmo, quando fez um belíssimo disco com Jorge Mautner onde dedica uma canção sobre o assunto. Mas o conceito de racismo que existe hoje não seria o mesmo da época e isso não diminui o grande mestre que foi Noel.
Noel faria 100 anos em 2010. Todo meu trabalho tem uma influência direta de música popular, pois esse é meu ofício principal e Noel tem um papel fundamental nisso. Abaixo vai uma letra de Noel e dois vídeos que ajudam a entender o que digo nesse texto.


Escola de Malandro

Composição: Noel Rosa, Orlando Luiz Machado e Ismael Silva (1932)

A escola do malandro
É fingir que sabe amar
Sem elas perceberem
Para não estrilar...
Fingindo é que se leva vantagem
Isso, sim, que é malandragem
(Quá, quá, quá, quá...)
[-Isso é conversa pra doutor?]

Oi, enquanto existir o samba
Não quero mais trabalhar
A comida vem do céu,
Jesus Cristo manda dar!

Tomo vinho, tomo leite,
Tomo a grana da mulher,
Tomo bonde e automóvel,
Só não tomo Itararé¹
(Mas...)

Oi, a nega me deu dinheiro
Pra comprar sapato branco,
A venda estava perto,
Comprei um par de tamanco.

Pois aconteceu comigo
Perfeitamente o contrário:
Ganhei foi muita pancada
E um diploma de otário.
(Mas...)

*Alusão à não ocorrida batalha de Itararé, durante a Revolução de 1930, entre forças revolucionárias e governamentais, com a endição destes últimos ao tomarem conhecimento da deposição do então presidente da república Washington Luís.


**Caetano veloso incluiu a musica Feitiço da Vila em seu último show 




4 comentários:

Hugo de Oliveira disse...

Quanta riqueza cultural por aqui...o seu blog é tudo de bom, gostei.
Noel Rosa, Caetano, Vinicius...nossa, amo tudo isso.

Voltarei outras vez aqui.

abraços
de luz e paz

Hugo

Rodrigo Braga disse...

Com muito prazer! Obrigado pela visita e apareça!

Flávio Morgado disse...

A homenagem não poderia ser feita de melhor forma. Uma discussão que merece espaço. Concordo que Caetano tenha uma retórica perfeita, e que há argumentos, contudo, é muito importante não esquecer o discurso datado desta canção. Contra ou a favor, deve-se compreender acima de tudo.
Parabéns!

F.M.

Batom e poesias disse...

Gosto muito de história, mas prefiro me deixar enfeitiçar por um samba do Noel. Será um palpite infeliz?

Isso aqui está ótimo, Rodrigo.
bj
Rossana