quarta-feira, 28 de julho de 2010

Carta ao puro (homenagem a Vinícius de Moraes)


O endeusamento de alguns poetas varia tanto quanto o gosto pessoal de cada um. Hora um poeta é maravilhoso, hora é pequeno. Hoje Vinicius de Moraes encontra-se em baixa nas rodas de discussão de poesia na cidade. Comecei a ler poesia muito cedo e minha família não separava por gênero, tempo ou estilo as obras. Acabei crescendo achando que era normal cada um se apresentar de uma forma assim como na vida. Um gosta de cabelos longos, outro usa curtos, um pinta cabelo, outro tem grisalhos, um é despojado outro se arruma demais, um mais preto outro menos preto e por aí vai. Ainda hoje me deparo com amigos analisando poemas e poetas. Cada um na sua onda como cantava Zeca Pagodinho. Vinícius foi transgressor ao meu modo de ver sua obra. Foi corajoso e ousado. Talvez o seu prestígio tenha diminuído porque se tornou cantor e compositor, levando a opinião a considerá-lo mais letrista do que poeta. Ainda hoje colocam em competição expressões artísticas o que é um erro. Mas acho que não toleram Vinícius por bater de frente com a poesia modernista ao ignorar a palavra como objeto autônomo, isolado na maioria das vezes do significado poético. Vinicius cadenciou rimas concatenou palavras de forma que ela dependesse de uma seqüência para se ter um discurso poético. Vinícius que era um poeta que conhecia muito poesia, trabalhava de forma espontânea e natural. Não havia preocupação em seguir ou não uma tendência. Sua poesia nascia daquela maneira, portanto não poderia ser diferente. A gota d’água para os puristas foi o sentimentalismo exacerbado. Mas a vida é assim mesmo...daqui a pouco Vinícius passa a ser referência máxima pelos “entendidos” de poesia que passarão a questionar outro poeta.      
    
O fato é que Vinicius é fundamental para mim! É minha antepenúltima referência citada, pois daqui a pouco volto a escrever para o blog. Vejo ainda sua poesia além (e alheia) de qualquer análise ou discussão. Vinicius morre em 1980 e seu amigo Drummond faz uma declaração: “Ele fora o único a viver como poeta!”

Carta aos puros
(Vinicius de Moraes)
Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.
 

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.
 

Ó vós, homens ilumidados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.
 

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.
 

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.
 

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.
 

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.
 

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.
 

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.
 

Ó vós, falsos Catões, chichibéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.
 

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o homem alheio é a melhor iguaria.
 

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.







6 comentários:

Carol Sakurá disse...

Olá!
Amo Vinícius,que em seus poemas e canções consegue encontrar o profundo da nossa humanidade de maneiras simples.Indentificação.
Um adendo,pois sendo mulher parafraseio poetinha:
Mulheres existem para serem amadas, não para serem entendidas.'
Vinicius de Morais

Beijo!

Zélia Guardiano disse...

Rodrigo, meu querido
Tudo perfeito aqui...
Seu texto, primoroso! Assino embaixo.
O homenageado não poderia ser outro: acertaste no alvo! Adoro Vinicius...
Carta aos puros é obra prima, onde se encontra, além da lindeza, conteúdo para reflexão.
É por isso que adoro vir aqui!
Enorme abraço,amigo!!!

Flávio Morgado disse...

O tão esperado chegou!
Não há o que dizer sobre Vinícius e sua influência no que escrevo. Mesmo que não seja tão forte hoje, eu acabo de escrever, olho pro lado e tá lá o velho. Vinícius é além do que escrevo. Dizer algo agora é como num dia de Natal querer agradecer ao pai. Não há o que dizer, lembremos tudo até chegar aquela fala. O discurso passa a ser inútil. Por isso somos incapazes de rememorar tudo, e existem os poemas. Pois leiam todos, a cada verso está um "obrigado poetinha!"
Linda homenagem, e muito bem escolhido o poema.

F.M.

Rodrigo Braga disse...

Obrigado pela visita Carol. Zélia fico extremamente feliz que tenha gostado do texto e mais feliz ainda pela visita. Carta aos puros é objeto de reflexão sim. Obrigado pela visita Flávio.

Batom e poesias disse...

Não gosto de puristas, preciosistas e outros tantos "istas" que cerceiam a criatividade.
Sempre fui fã do Poetinha, que viveu a vida como tal e cuja única regra, era ditada pelo amor.

Ótima postagem Rodrigo.
bj
Rossana

Anônimo disse...

Adorei o post, foi otimo para me ajudar a fazer um traballho sobre o Vinícius de Moraes e o seu papel na Bossa Nova. Parabéns :)