quinta-feira, 22 de julho de 2010

Ao mestre Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho com carinho

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.

Em 1904 a tuberculose não tinha cura e então um jovem de 18 recebe um diagnóstico com um peso de sentença de morte. O jovem que estou falando é Manuel Bandeira que começou uma luta sistemática em busca de uma cura. Ele mesmo chegou a dizer que o diagnóstico o tinha feito poeta. Mas como não há nada mais irônico que a vida, o poeta só veio a sucumbir com 82 anos deixando uma obra fabulosa. O poema abaixo vem a ter uma relação direta com meu livro que está em final de produção.



Versos de Natal

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletias as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo.
O menino que todos os anos na véspera do natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.


Sou da turma que não lê poesia traduzida. Chego a achar covarde alguém modificar uma palavra que foi escolhida de forma minuciosa para compor uma obra por outra com sonoridade totalmente diferente. Não existe regra sem exceção. Manuel Bandeira foi exceção ainda nessa área. Tomo ainda as palavras de Eduardo Ferreira no texto: Manuel e a escola de Tradução.

“Ainda está para ser escrita a história do impacto da atividade tradutória na carreira de alguns dos grandes escritores brasileiros. Não foram poucos os que se dedicaram a esse ofício - por necessidade ou por gosto. Manuel Bandeira foi um deles. É difícil mensurar a contribuição que o empenho de tempo e suor em traduções lhe rendeu na obra poética. A tradução da poesia, talvez o ramo mais instigante e desafiador desse ofício, é um exercício poético de raro valor.
A poesia - como as demais formas de escritura - não depende, nem pode depender, apenas de vontade ou inspiração. Não se trata apenas de exteriorização e sedimentação gráfica de sentimentos. Exigem-se altas doses de disciplina, aplicação, pesquisa lexical - em suma, um pesado trabalho intelectual, que, às vezes, na briga com o computador ou o lápis-papel, pode chegar ao esforço braçal.
A tradução da poesia é o supra-sumo, como objeto de estudo, de quem se dedica a examinar o fenômeno tradutório. Na poesia convergem sentido, ritmo, rima, a materialidade da palavra, e, até, às vezes, a distribuição espacial dos termos. Num poema, a língua alcança o ápice em termos de poder de significação e comunicação. Tudo ali pode querer dizer algo. Traduzir todo esse conjunto não é exatamente fácil, nem, claro, é algo que poderia ser matematicamente deduzido ou analisado.
Bandeira traduziu muito. Não só poesia. Traduziu biografias, romances, teatro. Shakespeare, Edgar Allan Poe. Menciona-se que a intensa militância na tradução de prosa influenciou Bandeira na guinada que o levou da poesia tradicional, rimada e metrificada, ao verso livre da poesia modernista.
Bandeira traduziu muita poesia. Verteu para o português, dentre outros, poemas de Goethe, Gabriela Mistral, Emily Dickinson e Omar Khayyam. Foram certamente exercícios que o ajudaram a aperfeiçoar a técnica de lapidação do texto em poema. Para as letras brasileiras, um duplo benefício: o aprimoramento da habilidade de um de seus grandes poetas e, de quebra, a incorporação ao português brasileiro de grandes obras poéticas estrangeiras.
Dizem que só um grande poeta poderia traduzir outro grande poeta. Bandeira, por esse prisma, certamente se habilitava para esse exercício. A poesia é uma atividade de risco, carreado pela extrema liberdade que o texto poético exige e confere. O tradutor de poesia, claro, partilha dessa mesma liberdade. Só que, no dizer de Brenno Silveira, tal latitude não representa uma vantagem; pelo contrário, traz implícita a dificuldade de, nada mais nada menos, demandar modificações diante do original, sob pena de uma completa descaracterização do poema.”

A Cristo Crucificado
(autor espanhol não identificado)
tradução de Manuel Bandeira

Não me move, meu Deus, para querer-te
O céu que me hás um dia prometido;
E nem me move o inferno tão temido
Para deixar por isso de ofender-te.

Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te
Cravado nessa cruz e escarnecido
Move-me no teu corpo tão ferido
Ver o suor de agonia que ele verte.

Moves-me ao teu amor de tal maneira,
Que a não haver o céu ainda te amara,
E a não haver o inferno te temera.

Nada me tens que dar porque te queira;
Que se o que ouso esperar não esperara,
O mesmo que te quero te quisera.

No me mueve, mi Dios, para quererte
el cielo que me tienes prometido,
ni me mueve el infierno tan temido
para dejar por eso de ofenderte.
Tú me mueves, Señor, muéveme el verte
clavado en una cruz y escarnecido,
muéveme ver tu cuerpo tan herido,
muévenme tus afrentas y tu muerte.
Muéveme, en fin, tu amor, y en tal manera,
que aunque no hubiera cielo, yo te amara,
y aunque no hubiera infierno, te temiera.
No me tienes que dar porque te quiera,
pues aunque lo que espero no esperara,
lo mismo que te quiero te quisiera.


Outra belíssima tradução feita por Manuel Bandeira, do soneto de Elizabeth Barrett Browning:

PARA DIZER A ALGUÉM

Amo-te quanto em largo, alto e profundo
minh'alma alcança quando, transportada,
sente, alongando os olhos deste mundo,
os fins do Ser, a Graça entressonhada.

Amo-te em cada dia, hora e segundo:
à luz do sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
quanto o pudor dos que não pedem nada.

Amo-te com o doer das velhas penas;
com sorrisos, com lágrimas de prece
e a fé da minha infância, ingênua e forte.

Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida! E, assim Deus o quisesse,
ainda mais te amarei depois da morte.


How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.
I love thee to the level of every day's
Most quiet need, by sun and candle-light.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints – I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life! – and, if God choose,
I shall but love thee better after death.


Sem mais sobre o assunto termino com outra pancada do mestre:
 
Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expedien-
te protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicioná-
rio o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as cosntruções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de
si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade de co-senos secretário do amante exemplar com cem
modelos de cartas e as diferentes maneiras
de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.



Por isso e por outras muitas que Manuel Bandeira é fundamental para esse rústico aprendiz de poeta..


6 comentários:

Carol Sakurá disse...

Olá,Rodrigo!
Belo post!
Tenho uma afeição por Bandeira,que soube identificar em sua obra o escrever como forma de cura da alma.
Pode ser o contrário,mas interpreto assim...rs.
Bandeira é a própria história de sua obra.


Pasárgada

"Não foste embora pra Pasárgada
Não era teu destino
Não te habituarias lá
Em teu território próprio, intransferível,
Nem rei nem amigo de rei,
és puramente aquele lúcido
e dolorido homem experiente
que subjugou seu desespero
a poder de renúncia, vigília e ritmo.

Carlos Drummond de Andrade

Beijos e ótimo fds!

Rodrigo Braga disse...

Obrigado Carol! Quantas curas em almas Bandeira já fez por esses anos todos...

Renata de Aragão Lopes disse...

Apreciei a leitura!

Beijo,
Doce de Lira

Rodrigo Braga disse...

Obrigado pela visita e apareça sempre Renata!

Flávio Morgado disse...

Não mais que justo que Bandeira fosse homenageado. Considerado por muitos como o maior poeta brasileiro. Achei muito boa a iniciativa de colocar este texto sobre tradução, é importante que as pessoas saibam o valor desta atividade, e que entendam que ela fez Bandeira ainda maior. O que evidencia ainda mais que a poesia modernista precisava de um poeta como ele: com domínio genial sobre a língua.
Muito bom!

F.M.

Rodrigo Braga disse...

Embora seja um erro colocar arte am competição, seria outro erro interromper alguém dizer que Bandeira foi o maior poeta brasileiro. Obrigado Flávio! Queria lembrar uma outra grande contribuição desse homem fabuloso.